João Ubaldo Ribeiro nunca vai morrer, mas morreu o dragão

19/jul/2014 . 10:34


No final da premiada obra de João Ubaldo Ribeiro, o sargento Getúlio Santos Bezerra, vendo a “força” que vem chegando, como a “morte deslizando pelo rio”, decide, como em todo o romance, encarar o desafio que lhe foi incumbido. Prestes a ser alvejado, num insano tiroteio entre ele e um pelotão, ele diz: “eu vou morrer e nunca vou morrer”.

(Foto: Divulgação)

(Foto: Divulgação)

O Teatro NU despede-se de um dos maiores escritores do mundo. No Brasil, diminuímos o valor de nossos grandes homens enquanto exaltamos a decadência de estruturas falidas. Temos o melhor futebol do mundo, levando de 7×1, mas João Ubaldo Ribeiro é somente um dos grandes escritores baianos? Não. Suas obras tornaram-se imortais e talvez cresçam em importância, ainda mais, à medida que o tempo vá passando e esse Brasil real, arcaico, profundo, vá se perdendo entre concretos, decretos e analfabetos.

João Ubaldo conseguiu marcar sua presença na literatura mundial com uma linguagem própria. Suas obras trazem os sons e expressões do Nordeste, a dicção baiana e sergipana, sem perder a poesia jamais. Essa mistura sensacional do linguajar popular com imagens de alto teor poético e literário trazem uma força à sua obra que é especial em nossa literatura, sendo, mais que um herdeiro de Jorge Amado, um outro olhar, arguto, delicado e intenso, sobre nosso povo e nossa cultura. A obra fala por si, e basta ler seus contos, seus grandes romances, como Viva o povo brasileiro e Sargento Getúlio, suas crônicas, e podemos ver como a Bahia tá viva ainda lá, e como ele conseguiu traduzir essa Bahia e esse povo nordestino com alta literatura. Não à toa, João era um intelectual de primeira e, já na epígrafe de Sargento Getúlio, quando nos diz que aquela é uma história de aretê, vê-se a sólida formação desse que foi mais um dos grandes que se vão.

Homenageá-lo em vida, com nossa montagem de Sargento Getúlio, ao menos deu-nos o consolo, ao Teatro NU, de não repetir o erro recorrente desse país que, muitas vezes, deixa morrer à míngua grandes homens, para depois exaltá-los quando mortos. Conseguimos comemorar, nos 5 anos de nosso grupo, também os 70 anos de vida e 40 de publicação da obra, contando com sua ilustre presença na estreia, fato que repetiu-se quando da comemoração de seu aniversário em Itaparica, tempos depois.

Ao menos, nosso espetáculo está vivo. Será apresentado hoje e amanhã, em Brasília, e continuará rodando o país pelo Palco Giratório (confira, aqui, a programação desse mês), programa de circulação do SESC que nos levará a mais de 40 cidades do país inteiro.

Certas pessoas jamais deveriam morrer. Acho que é por isso que uma centelha sagrada, ou profana, faz com que a arte, a literatura, as obras dessas pessoas existam, como ranhuras na pedra, como marcas, sulcos na grande rocha que é nosso planeta.

João Ubaldo Ribeiro vai estar vivo, como o povo brasileiro que ele homenageou, traduziu e fantasiou em suas obras. Essa terra vai ter sempre sua força na obra desses grandes homens, e esses grandes homens sempre terão sua força por causa dessa terra. Pois “veja que terra essa, com nós aqui plantados no chão, não semos a mesma coisa?”

Ficam aqui algumas das últimas palavras de Getúlio, como um epitáfio desse homem que pertence a uma geração que marcou profundamente a cultura brasileira e que, aos poucos, vai saindo de cena, deixando a grande preocupação – jamais desesperança – de quem ocupará o espetáculo vazio:

Tinha minha missão, isso tinha. E fiz. Tinha minha vida, isso também, e vivi, e se me perguntasse quer viver uma vida comprida amofinado ou quer viver uma vida curta de macho, o que era que eu respondia? Eu respondia: quero viver uma vida curta de macho, sendo eu e mais eu e respeitado nesse mundo e quando eu morresse alembrem de mim assim:

Morreu o Dragão.

Por Gil Vicente Tavares

Encenador, dramaturgo, compositor e articulista. Doutor em artes cênicas e diretor artístico do Teatro NU

Comente agora

Comente esta matéria

Apelido:
E-mail:
Site:
Comentário:

Outras matériasvá para homepage

Sobre Zúñiga, Neymar e “macacos”

Sobre Zúñiga, Neymar e “macacos”(0)

Os xingamentos ao colombiano que tirou da Copa a estrela da seleção revelam o Brasil em que a abolição da escravatura jamais foi completada O zagueiro Juan Camilo Zúñiga entrou bruto com o joelho nas costas de Neymar. Era um jogo duro e a seleção brasileira também já tinha protagonizado entradas fortes sobre membros adversários.

Maria Quitéria: heroína baiana

Maria Quitéria: heroína baiana(0)

Logo após a proclamação da Independência do Brasil, o Conselho Interino de Governo, sediado em Cachoeira na Bahia, conclamou os baianos do Recôncavo a se alistarem para luta da independência do Brasil. O escritor Brenno Ferraz (1923) que descreve a guerra da Independência da Bahia informa que Maria Quitéria solicitou o consentimento ao pai, Gonçalo

A Guerra da Bahia: um panorama

A Guerra da Bahia: um panorama(0)

A Independência do Brasil guardou para a Bahia episódios bastante intensos. Nesta então província, portugueses e brasileiros, em lados opostos, pegaram em armas para definir o futuro da porção americana do Reino Unido português. Esta guerra durou cerca de um ano e alguns dias, entre 25 de junho de 1822 e 2 de julho de

O homem e o meio ambiente

O homem e o meio ambiente(0)

Não há como falar em meio ambiente sem discutir a questão da sustentabilidade, pressupondo que sustentabilidade está intrinsecamente relacionada ao meio, às pessoas, às relações, usos, necessidades, sistemas produtivos. Portanto, sustentabilidade envolve todos os atos e relações do homem em sociedade e de sua interação com o meio em que vive. Os eventos que vêm se apresentando atualmente,

Os bananas e o coxinha

Os bananas e o coxinha(0)

Foi Luciano Huck, após ser assaltado em outubro de 2007, que escreveu a respeito de seu próprio assassinato essa fantasia bizarra: “Uma jovem viúva. Uma família destroçada. Uma multidão bastante triste. Um governador envergonhado. Um presidente em silêncio. Por quê? Por causa de um relógio”. Como se vê, Huck atribuiu a si mesmo uma importância

leia mais

PARCEIRO . IGUAIMIX

mattus

manoel lobo saitt

my baby - viviane otica vitoria

somai

Acesse o antigo portal

IGUAIMIX.COM WebtivaHOSTING | webtiva.com . webdesign da Bahia