Por Wellington Araújo

Ritos de passagem são aspectos interessantes em qualquer cultura e sociedade, e que por isso devem ser respeitados. É de Nelson Rodrigues a frase que diz que “o brasileiro é um feriado”, acredito mesmo que temos caracteristicamente uma satisfação em aproveitar os pequenos momentos da vida de maneira mais intensa possível. Penso até que a identificação do brasileiro com o feriado está na mesma vocação que temos para com o carnaval. O período de carnaval se estende bem mais que qualquer festa ou feriado religioso no nosso país. E quando o brasileiro quer falar sobre um evento bastante movimentado e animado e que traz muita satisfação, logo se ouve: Foi um verdadeiro carnaval! E tudo não passa mesmo especificamente de uma festa da carne, satisfação que nossa alma alcança através do corpo. Época de se soltar, e em poucos dias de folia exigir da própria carne um comportamento que ela não teve durante o ano todo.

Parece que esse negócio das escolas de samba do carnaval do Rio de Janeiro se prepararem o ano todo para apenas um momento apoteótico não veio somente da nossa própria maneira de vivermos a vida, mas acima de tudo está aqui implícito o “ser brasileiro”. Trabalhar o ano inteiro por um momento de sonho, isto é um sintoma bastante interessante para a antropologia. Pois o carnaval é essencial para o brasileiro. Ele se torna seu estilo de vida. O que seria do brasileiro sem o carnaval?

Tom Jobim e Vinícius de Moraes resumiram bem o que é ser brasileiro:

“A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
Pra tudo se acabar na quarta feira
Tristeza não tem fim felicidade sim”

Ser brasileiro num país de vocação carnavalesca como o Brasil exige não só libertinagem, uma libido desenfreada, ou a bebedeira excessiva que muitas vezes acaba em violência e morte. Mas, acima de tudo ser brasileiro exige gana, persistência e muita imaginação pra se viver de fantasias. Fala-se da grande ilusão do carnaval, dos bailes de máscaras. Como diz a música, lugar propício para se imaginar pirata, e quem sabe talvez comandar um navio, colocar as mãos em tesouros escondidos...

Ao pobre cabe esse tipo de fantasia, um pouco de felicidade até quarta feira. As máscaras servem para encobrir os rostos já transfigurados pela alegria das musicas danças e bebidas. Parece haver para alguns uma certa vergonha em se divertir. Percebe-se pelos corpos gastos, pelas caras cansadas e pelas roupas surradas que são pessoas exploradas. Gente humilhada e submetida durante todo o ano aos duros flagelos impostos pelo sistema de produção capitalista. Esta não valoriza a criatividade do trabalhador. A mesma criatividade que o leva a se fantasiar, a inventar passos e danças. O capitalismo não ama a pessoa, apenas sua força de trabalho, seus músculos, sua cabeça, sua habilidade e especialmente sua produtividade.

Quem sabe o gosto por fantasias não se dá também em razão de uma fuga, tentativa de esconder seu corpo explorado? E quem sabe pela maneira como o estado se apropria de certos sistemas religiosos, e também de uma moral causticante que cerceia a liberdade de expressão daqueles que se quer têm o direito a questionar a relevância de certos padrões de moralidade ou de certos tabus sexuais e comportamentais.

Não é novidade que o que é reprimido é acalentado no inconsciente com maior veemência, e as pessoas capricham, pois na quarta feira será preciso colocar cinzas sobre a cabeça, rezar pelos pecados e novamente voltar a brincar de vaquinhas de presépio. No que tange a este ponto da moralidade até os mais abastados também são atingidos, Afinal, o carnaval é como chuva, vem sobre os ricos e os pobres.

O comércio vende bastante, em capitais como Salvador e Rio e Recife a injeção de dinheiro na praça é como oxigênio nas veias. O turismo movimenta os bolsos dos comerciantes locais. Isso é bom, apesar da quantidade dinheiro é jogado fora em abusos dos mais desmedidos. O consumismo se mostra na oportunidade de gastar naquilo que não é pão, porque durante todo o ano se o pão não faltou, outra coisa foi ausente, o lazer, o prazer, a beleza das formas. Parafraseando Arnaldo Antunes: O povo não quer só comida, quer também bebida, diversão e arte, o povo não quer só comer, mas, comer e fazer amor. O povo não quer só beber, mas querem prazer pra aliviar a dor. Não só pão, mas, sexo, diversão e arte!

O povo quer ser inteiro, e seu carnaval é um grito em favor de sua integralidade. Um anseio de realização que o poeta chama de “felicidade” em contraste com uma vida medíocre. Vejo a importância do carnaval enquanto rito de nossa sociedade. Porque é a ocasião para o brasileiro se conhecer. É o momento em que por alguns dias ele pode deixar de ser “certinho”, e de alguma maneira se lançar nalgum tipo de loucura que justifique a vida que tem. Dizem que as melhores loucuras são as de carnaval. São as mais aceitas, e, por conseguinte perdoadas com maior facilidade. Imaginemos se o brasileiro não tivesse no carnaval esta espécie de exorcismo onde durante estes dias todos os seus demônios fossem soltos, e onde deixassem de ver a vida de maneira menos interessante.

Portanto, o carnaval se afirma como um momento apropriado para transgredir o que nos outros dias do ano são considerados sagrados, eis aí ao significado da festa da carne. Eis de igual modo a oportunidade que todo brasileiro tem de experimentar um tipo de transcendência diferente daquela pregada pelas religiões. De algum modo temos todo um solo propício para o carnaval ser do jeito que é e de alguma maneira até definir um pouco o perfil do brasileiro. Somos sofridos, oprimidos, mas por outro lado somos alegres e temos um profundo desejo por transcendência, seja ela qual for.