O poder que emana do povo

4/dez/2012 . 23:35


As reflexões que se seguem são fruto do momento histórico pelo qual passa a população mundial frente às intempéries do capitalismo e suas constantes reconfigurações no processo de luta de classes entre os povos da terra.

Falo de um sistema que se apropria de uma legalidade, que é a lei, para justificar a dominação e opressão das pessoas em todos os sentidos.

No caso do Brasil, essa diferença entre o que está na lei e o que existe na prática não é de hoje, é de sempre. E o que caracteriza a vida política brasileira é a duplicidade, com a existência de dois ordenamentos jurídicos: a organização oficial e a organização real. E, também no sentido figurado, há duplicidade, ou seja, o verdadeiro poder é dissimulado, é oculto.

Nós encontramos na Constituição a declaração fundamental no artigo 1º, parágrafo único, de que todo poder emana do povo que o exerce diretamente por intermédio de representantes eleitos. Mas na verdade, o povo não tem poder algum. Ele faz parte de um conjunto teatral, não faz parte propriamente do elenco, mas está em torno do elenco. Toda a nossa vida política é decidida nos bastidores e para vencer isso não basta mudar as instituições políticas, é preciso mudar a mentalidade coletiva e os costumes sociais.

E a nossa mentalidade coletiva não é democrática. O povo de modo geral não acredita na democracia, não sabe nem o que é isso. Não sabe o que é um regime político, em que ele tem o poder em última instância e que ele deve decidir as questões fundamentais para o futuro do país. Não sabe que ele deve não somente eleger os seus representantes, mas também tem o poder de destituí-los.

O povo não sabe que ele deve ter meios de fiscalização contínua dos órgãos do poder, não apenas do Executivo e Legislativo, mas também do Judiciário, que se verificou estar corrompido até a medula, com raras e honrosas exceções.

E por que essa mentalidade?

Essa mentalidade coletiva é fruto de quase quatro séculos de escravidão. Quando Tomé de Souza desembarcou no Brasil, em 1549, trouxe o seu famoso regulamento de governo, no qual tudo estava previsto, mas só faltava uma coisa, a constituição de um povo. Havia funcionários da metrópole, havia um contingente de indígenas, havia o começo da escravidão, mas não havia povo. E nós não chegamos a constituir esse povo ao longo da nossa história porque o poder sempre foi oligárquico, ou seja, de uma minoria de grandes proprietários e empresários com apoio do contingente militar e da Igreja Católica.

Assim, nós chegamos ao século XXI numa situação de duplicidade completa. Todos acham que nós vivemos numa democracia e república, mas nós nunca vivemos de modo republicano e democrático. O primeiro historiador do Brasil, Frei Vicente do Salvador, apresentou uma declaração que, até hoje, permanece intocável, dizendo que nenhum homem dessa terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, se não cada um do bem particular. Não existe a possibilidade de democracia, sem que haja uma comunidade em que o bem público esteja acima dos interesses particulares. E o chamado povão, as classes mais populares e humildes já trazem de séculos essa mentalidade de submissão, de passividade. Procuram resolver os seus problemas através do auxílio paternal de certos políticos ou através do desvio da lei. Nós vemos isso cotidianamente, nunca nos insurgimos contra uma lei que consideramos injusta, mas simplesmente nos desviamos da proibição legal.

E como mudar essa mentalidade?

Essa mentalidade e costumes foram forjados por uma instituição política colonial, depois imperial e falsamente republicana, mas, sobretudo, pela vigência do sistema capitalista, que entrou em vigor no Brasil no ano do descobrimento. E o sistema capitalista tem essa característica específica: o poder é sempre oculto e dissimulado.

Os grandes empresários dizem que não são eles que fazem a lei, mas na verdade são eles que fazem o Congresso Nacional. São eles que dobram os presidentes da República. E os grandes empresários atualmente são os grandes banqueiros, os personagens do agronegócio, os industriais e os grandes comerciantes.

Então veja: para mudar tudo isso é preciso um trabalho longo e contínuo de educação cidadã. Isto, evidentemente, a partir de um trabalho de contínua denúncia dessa situação oligárquica. Mas a denúncia dessa situação hoje na sociedade de massas passa necessariamente pelos órgãos de comunicação de massa que estão nas mãos dos grandes empresários. Então, a situação é muito pior do que a gente poderia imaginar, mas o importante é não desanimar, não perder o impulso no sentido da denúncia completa. Nenhum sistema de poder permanece em vigor se é desmoralizado perante o público. Nós temos poucas possibilidades de desmoralizar o sistema capitalista, mas uma delas que temos que aproveitar até o fim é a imprensa corajosa e lúcida.

O grande problema dos sindicatos, que se revelou hoje, é que eles não têm espírito público. Eles defendem em geral muito bem os interesses da classe trabalhadora, mas muitas vezes os meios empregados para essa defesa vão contra o interesse público. Quero dar um exemplo que vai provocar certo escândalo. Eu sou radicalmente contra a greve no serviço público, porque o grande prejudicado não é o governo, é o povo. A greve foi um instrumento legítimo de defesa dos trabalhadores nas empresas privadas, porque atinge diretamente os interesses dos empresários. No serviço público é diferente. Veja o que aconteceu nas Universidades Federais. Todas entraram em greve. Os alunos declararam greve. Ora, os alunos das Universidades Públicas têm o privilégio de não pagar mensalidades. E como é que são sustentadas essas Universidades?

Com o dinheiro do povo, e digo mais, com o dinheiro do povo mais pobre, porque 70% dos impostos desse país são indiretos, ou seja, quem tem menos paga mais. É por isso que nós precisamos ampliar a educação cívica e política no sentido amplo da palavra. Na periferia é preciso multiplicar esse tipo de ensino para que o povo comece desde já a se revoltar. Se fulano vier pedir votos para vereador ou prefeito, é preciso saber quem é o fulano, quem o mandou, quem é o responsável por sua candidatura.

No entanto, os desafios de consolidação de uma democracia participativa esbarram justamente na falta de vontade e visão mais politica por parte da população que assiste ao caos social bestializada e atônita, apostando todas as suas fichas em um sistema político falido, baseado na lei do mais forte e da livre concorrência.

 

Por José Ronaldo
Especialista em Fundamentos Sociais e Políticos da Educação – UESB – e ativista social.

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