A Terapêutica Ambivalente

10/jan/2014 . 9:05


Fui criado num interior, lá aprendi muitos ditados populares, isso pra mim sempre foi motivo de orgulho contrastando com os jargões sem imaginação da cidade grande. Mas de todos os ditados, não me esqueci de um em especial, “O QUE NÃO MATA, ENGORDA.” Falávamos isso ocasionalmente sacudindo a poeira de um pedaço de pão resgatado por segundos do chão após uma queda ligeira. No entanto, foi adulto que entendi melhor a filosofia por trás do dito popular. Descobri que essa frase que fazia parte de minha infância teria surgido da mente de um dos principais filósofos alemães de todos os tempos. Ele dizia: “AQUILO QUE NÃO ME MATA, ME TORNA MAIS FORTE.” Ela praticamente resume o sentido da filosofia de Nietzsche, superação.

Ambiv Humana (1)

Vivemos hoje sob a patrulha daqueles que querem tornar o mundo um lugar melhor; Os que prezam pela hiper higiene, pelas causas ambientais, pelo não consumo de carne, pelos que acreditam que mudando a linguagem mudarão também as motivações internas do homem (a praga do politicamente correto). Estamos na mira dos que intentam a todo custo nos salvar, mesmo que não aprovemos qualquer intervenção “salvífica” em nosso favor, mesmo que isso implique em manipular informações, passar por cima da vontade alheia, censurar a liberdade de expressão e até mesmo comprar apoio de parlamentares, sempre com a justificativa de a todo custo fazer o bem para as pessoas. Tudo em nome de um ser humano melhor.

No fim do ano passado (2013), vi manifestações do tipo “afetadinhas” ganharem coro após a tétrica luta de Anderson Silva contra Chris Weidman, o resultado dela todo mundo sabe, uma canela quebrada protagonizando momentos de dor do atleta brasileiro mostrados repetidamente na imprensa mundial. Destaco aqui o desejo mórbido de muitos em ver a cena. Recordo-me agora do que disse uma amiga quando relatei em detalhes o ocorrido na luta, os olhos dela brilharam, querendo ver a cena que perdeu, e alguém salientou que não conseguiria ver algo tão chocante. Quando pra surpresa das pessoas essa mesma amiga enfatizou sua curiosa satisfação na cena, alegando que o traumatismo não fora nela. Sua declaração honesta e sincera é de alguém que sem perceber entende o dito do filósofo em “nos tornar mais fortes”.

Entretanto, fraco é o projeto de lei que visa parar com a transmissão do MMA na Tv aberta, classifico como mais uma tentativa dessas de “pessoas civilizadas” que querem salvar o mundo do “espetáculo de selvageria e violência”, com o propósito de que qualquer “coisa do tipo” não nos mate. Mas o que é gente civilizada? Defino civilização como o processo pedagógico da hipocrisia entorpecente. Não foi Freud quem disse que a civilização surgiu quando nossos ancestrais quebraram com o ciclo dos incestos, quando nossos parentes primatas deixaram de transar com suas mães, irmãs e filhas? Assim surgiu a sociedade, como produto de repressão nas primeiras hordas e clãs, ela é por natureza resultado de tabus, costumes e leis com finalidade de controle social. Portanto, expor sentimentos ocultos, dizer o que pensa, ou demonstrar até mesmo a violência que pulsa dentro de si, é ser consideravelmente incivilizado. Minha amiga com certeza foi considerada insensível ao expor o que nenhum ali naquela sala teria coragem de expor, sua ancestral sede por ver sangue escorrendo. Alguns assistem a programas policiais sensacionalistas, outros gostam de MMA (artes marciais mistas).

Confesso! Gosto desta “rinha de galos”, desse espetáculo de gladiadores romanos. E como todos, lá no fundo, e em certa medida, periodicamente necessitamos ver sangue, dor e sofrimento. Novamente confesso! Aprecio as boas tragédias gregas, também gosto de Dostoievsky, de um MacBeth shakesperiano, e da “Vida Como Ela É” de Nelson Rodrigues. E isso me torna mais humano, ao contrário do que pensam alguns que acham que crianças que jogam games violentos se tornam assassinos e sociopatas.

Foi com Nietzsche que aprendi ter uma melhor leitura da realidade, e também a entender o processo de superação de nossas dores e frustrações, mesmo assistindo MMA. As pessoas não entendem que a violência, e também a morbidez em ver a Perna de Anderson Silva se quebrando, é um traço peculiar de nossa natureza humana, não se enganem, não há muita coisa que preste em nós! A cerca disso concordo com a antropologia de Santo Agostinho, sobre nossa natureza humana caída prefaciar nossa “alma sebosa”. Essa história de pensar que somos civilizados afirma toda uma vida vivida sob as aparências, somos contidos pela hipocrisia normal e cotidiana.

Temos o “Médico e o Monstro” dentro de nós e não admitimos isso, somos Mr. Jakyll e Mr. Hyde, um conflito ambivalente e perpétuo, a vida privada lutando com a vida pública, como conceitos de sombra e repressão que tanto a psicanálise expõe. Então, prefiro ver o MMA como uma espécie de Catarse de massa, servindo como uma tragédia grega antiga, um tipo de encenação da violência que talvez seja necessária, pois a pancadaria, a dor, e o sangue vistos de longe tenderiam a descarregar a mente do espectador e a aliviar suas tensões reprimidas nesse processo civilizatório. Cada um projetando sua agressividade sobre os lutadores no octógono.

Poucas pessoas entendem, mas quando minha amiga se apropriava da cena da dor de Anderson Silva, experimentava a dor dele sem que aquilo pudesse atingi-la de fato. Não foi a canela dela que tinha se partido, mas a dele, e no fundo isso a aliviava. Nietzsche afirmava como a cultura grega antiga era marcada por uma sensibilidade ao sofrimento, isso foi elemento criador das tragédias gregas que com seu teatro criaram a arte da aparência e da beleza a fim de tornar a vida mais alegre. Nesse sentido, negar o sofrimento é negar a própria vida.

As perdas surgidas ao longo do caminho são inevitáveis, mas nem por isso é de todo um mal. Ao contrário, estimulam a vida. Foi outro filósofo alemão, Johann Schiller, que afirmou que a gente só consegue se comover com a própria dor quando aprende a se distanciar dela, e a arte cria esse afastamento. Numa peça ou num filme, por exemplo, você chora pelo herói, se entristece por ele, sente emoções que se fossem suas acabariam com você, mas você está longe, sentado em sua poltrona assistindo e “botando seus demônios para fora”. O teatro como simulações trágicas ou encenações de combate se aproxima do MMA. Quando o lutador golpeia seu oponente, ele evita de que a plateia faça aquilo, dela ter que ferir alguém, dela ter que agir agressivamente. O lutador é aquele que pula o abismo pela plateia. Se Anderson Silva vive a dor que tem que ser vivida, ele é a representação do antídoto da dor no peito da plateia, que desvia a agressividade humana para uma situação paralela, isso pode diminuir o derramamento de sangue cotidiano. Assim, os combatentes do MMA funcionariam mais ou menos como mártires, se sacrificando pelos espectadores acomodados em suas poltronas.

Essa canalização da violência para uma cena paralela é muito importante para equilibrar as relações humanas, definitivamente, não acredito na supressão total da violência, já que a violência é constitutiva da sociedade humana. Foi com o propósito de redução de danos que ao longo da história as pessoas criaram mecanismos de deslocamento dessa violência a fim de que tivessem uma possibilidade de convivência mais pacífica. Pensem em como as pessoas adoravam o sangue pela areia do Coliseu romano, leões rasgando carne humana e etc. Não iremos muito longe e perceberemos de que forma a religião lida com isso desde os primórdios; um exemplo é a figura de “bode expiatório” dos judeus, vindo depois se tornar a própria figura do Filho de Deus encarnado em Jesus, e lembrem-se da carnificina que é a cena da crucificação e de como inspira grupos cristãos extremistas numa periódica automutilação relembrando o martírio de Jesus em seus corpos. E que tal o fascínio que o filme PAIXÃO DE CRISTO causa nas pessoas, ou como em meio a lágrimas elas celebram a eucaristia bebendo o sangue e comendo o corpo despedaçado de seu herói abatido como num ritual antropofágico primitivo?

De fato, não é possível vivermos num mundo completamente em paz como carneirinhos tendo essa natureza que temos; ondulante, ambivalente e torpe. A gente pode reduzir a violência, mas acabar com ela a gente não acaba…  Para a filosofia nietzschiana, só vamos ter uma sociedade realmente ética se moldarmos um homem forte e capaz de lidar com a dor e as frustrações e transformá-las em fonte de vida e ação. O que não me mata me torna mais forte e assim me distancia de qualquer utopia, seja religiosa, política e filosófica.

 

Por Wellington Araújo

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