Retorno àqueles dias “mal-ditos”

31/mar/2014 . 20:08


Utopia de saber a respeito daquelas páginas infelizes de nossa história deve servir como um horizonte futuro

Eu nasci em 1974, quando o Brasil estava sob a ditadura militar e a  República sob a presidência do general Ernesto Geisel. Nasci na periferia miserável de Alagoinhas, cidade do interior da Bahia. Quando me percebi como uma pessoa, na primeira metade dos anos 1980, o regime militar ainda vigorava; mas lá, por aquelas bandas, não se fala em ditadura. Meus pais, meus tios e meus vizinhos – aquelas pessoas pobres em luta apenas pelo “pão-de-cada-dia” – não falavam em ditadura. E aquele comunicado oficial do órgão de censura que antecipava cada programa de tevê que eu via pela janela do único vizinho com aparelho em casa; aquele comunicado nada significava além de um alerta inócuo para mim e para os demais que se agrupavam em frente à tela para assistir principalmente às telenovelas.

Ditadura Militar

Só anos depois, já no final do ginásio (hoje chamado ensino fundamental), que eu pude perceber, pelos livros da biblioteca da casa paroquial (Brasil: Nunca Mais, o principal deles) que nós fazíamos parte da pátria-mãe que dormia distraída enquanto era subtraída em “tenebrosas transações”, para citar Chico Buarque.  Aliás, por falar em Chico Buarque, a trilha sonora oficial daqueles “anos de chumbo” – que inclui, além de Buarque,  Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Torquato Neto, Elis Regina e etc. – não era ouvida naquelas bandas. O que se tocava nas poucas radiolas do bairro, autofalantes da “Feira do Pau” e na Rádio Emissora de Alagoinhas eram artistas como Nelson Ned, Odair José, Agnaldo Timóteo,  Paulo Sérgio, Cláudia Barroso, Waldick Soriano e Fernando Mendes, além de, claro, Roberto Carlos.

Não se falava em ditadura militar também nas escolas Maria José Bastos e Polivalente de Alagoinhas, onde cursei o primário e o ginásio. Mas, todos os dias, antes de entrarmos para as salas de aulas, éramos obrigados a cantar o Hino Nacional enquanto a Bandeira do Brasil era hasteada; e nas aulas de Educação Moral e Cívica – disciplina que nós chamávamos simplesmente de “emecê” – aprendíamos que, em 31 de março de 1964, aconteceu, no País, uma revolução conduzida pelas Forças Armadas que o livrou do “mal do comunismo”. Nenhuma professora nos explicava por que o comunismo era um mal. Lembro-me, certa vez, de minhas irmãs mais velhas e já adolescentes contarem, em casa, que “uns estudantes comunistas criaram uma chapa Viração para derrubar o centro cívico e criar um grêmio livre na escola”. Perguntei, depois, a meu pai o que eram comunistas e ele me respondeu que era o “papa-figo” (corruptela de “papa-fígado”). Naqueles anos, crianças, vivíamos aterrorizadas pelos relatos de que um jipe ou uma rural vasculhava as ruas da cidade, principalmente à noite, em busca de meninos e meninas para lhes tirar o fígado.

Não se falava em ditadura militar entre os adultos que povoavam a minha infância, mas todos se referiam a um tal tenente Cruz e à ordem que ele impunha à Alagoinhas. Os adultos descreviam a crueldade que o tenente Cruz infligia aos “bandidos” com um misto de pavor (da violência praticada) e alívio (por estarem livres de “bandidos”). Anos depois, já frequentando o movimento pastoral da Igreja Católica, eu descobri que o já capitão Cruz era um delegado regional nomeado por políticos do PDS. Cruz morreria poucos anos mais tarde. Houve rumores de que ele fora uma das primeiras vítimas da Aids na cidade.

As verdades da ditadura que conheço hoje – a censura, os conflitos, as torturas, os assassinatos, os exílios – não chegavam como tais até nós, da mesma maneira que nossa verdade, naqueles anos, era – e ainda é de certa forma – ignorada pelos envolvidos na resistência à ditadura militar e responsáveis em parte pela (re)construção da memória daquele período. A memória, sendo uma construção social, pode cristalizar determinados aspectos de um tempo em detrimento de outros que poderiam e podem ser muito úteis para se pensar o quadro político-social vigente naqueles anos (afinal, a visão de mundo das camadas populares, colocadas à margem do centro de decisão política, deve ter algo a nos dizer sobre a ditadura militar: elas não sabiam ou não queriam saber ou tinham medo de saber ou eram simplesmente ignoradas porque subalternas ou invisíveis? Sabemos hoje que, durante a ditadura militar, o perigo rondava o conhecimento, e que, por isso, muitos oscilavam entre saber e fingir que não sabiam ou esquecer). Ora, o historiador francês Jacques Le Goff, afirma que é preciso interrogar-se sobre os esquecimentos. “Devemos fazer o inventário dos arquivos do silêncio, e fazer a história a partir dos documentos e das ausências de documentos”.

Até onde se sabe, não existem documentos que reconstruam, por exemplo, a memória do tratamento que os líderes dos movimentos revolucionários deram aos homossexuais (em especial às mulheres lésbicas) seja em seus “aparelhos”, seja nas prisões. Sendo assim, na reconstrução dessa memória, devemos trabalhar também a partir da ausência de documentos e do silêncio em torno desse assunto.

Há muito para se dizer sobre aqueles “dias mal-ditos”. Esta expressão  batizou uma atividade acadêmica que realizamos na Universidade Jorge Amado em 2004, ano em que o golpe militar completou 40 anos. Nessa atividade, apresentei o resultado parcial de uma análise, à luz dos Estudos Culturais, das relações (assim, no plural) das telenovelas da Globo com a ditadura.

A eleição da presidenta Dilma Roussef – ela mesma uma vítima direta dos crimes da ditadura militar e agente da resistência ao terrorismo de estado praticado naqueles anos – abriu um capítulo para a memória, que não consiste apenas em estabelecer uma verdade historiográfica daqueles dias. Tanto a verdade historiográfica quanto a temporada de julgamentos dos criminosos  que esperamos que se suceda à historiografia pressupõem uma construção de significados em um prazo longo (e vimos, ao longo da atuação da Comissão Nacional da Verdade constituída pela presidenta, que essa construção resultou em conflito ideológico e de valor – lembremos, por exemplo, da tagarelice do deputado e ex-militar Jair Bolsonaro, defendendo que “se gozava de liberdade no período da ditadura”; a ação de militares contra uma novela do SBT que tratou superficialmente “daqueles dias mal-ditos”; e o manifesto contrário à Comissão assinado por mais de cem militares da reserva e seguido pela arrogante declaração do secretário-geral do Exército questionando a veracidade das torturas de que fora vítima a presidenta Dilma).

A verdade – ou verdades – sobre os porões de tortura,  voos da morte, assassinatos, sequestros, a desumanidade dos métodos do Estado para conter a resistência é certamente terrível, sobretudo para quem sobreviveu aos fatos. Mas é necessária. Eu tenho direito a ela! Minha geração e as que vieram depois têm direito a ela!

A Comissão da Verdade, liberada do imediatismo dos fatos, pode nos oferecer uma narrativa não unificadora, porque essa não seria desejável. Esperamos que todos os que escreveram aquelas páginas infelizes e sobreviveram a esse ponto de resgatá-las participem da (re)construção dessa memória. Por isso, para garantir a lisura dos trabalhos da mesma e auxiliá-los ao mesmo tempo, um grupo de deputados da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara instituiu uma Subcomissão  Parlamentar da Memória, Verdade e Justiça coordenada pela deputada Luiza Erundina. Sabemos que não poderemos reconstruir tudo, mas a utopia de tudo saber a respeito daquelas páginas infelizes de nossa história deve servir como um programa, um horizonte e uma advertência para o futuro.

Por Jean Wyllys

Escritor, jornalista e deputado federal pelo PSOL-RJ. Seu relato é o terceiro de uma série de 50 depoimentos coletados para o especial Ecos da Ditadura, que lembra os 50 anos do golpe militar

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