‘Ninguém vende, a gente doa para salvar vida’, diz produtor de maconha medicinal
“Jardineiro” doa o remédio, mas prefere que as famílias plantem sua maconha e elas mesmos produzam”
É em uma casa comum na zona leste de São Paulo que um “jardineiro”, como ele mesmo se denomina, cuida de suas plantas. Corta cuidadosamente um punhado de flores, mas não as coloca em um vaso. Ele as distribui na sombra, longe do sol, e, por 15 dias, aguarda que elas sequem completamente. Pronto: em um processo que dura aproximadamente três horas, um óleo viscoso de cheiro adocicado é extraído para, ilegalmente, salvar vidas.
Assim como no Rio de Janeiro, cultivadores de maconha em São Paulo e em todo o Brasil se arriscam a burlar a lei ao produzir um óleo rico em canabidiol (CBD), substância retirada da planta que não causa efeitos alucinógenos. O medicamento vem sendo utilizado como última alternativa por pacientes com câncer e epilepsia que já desistiram de se curar pelos tratamentos convencionais.
O CBD, proibido no Brasil, pode ser importado de alguns estados americanos em que sua produção é legalizada. Mas a burocracia para convencer a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) a permitir a importação e, principalmente, o preço do produto impedem o acesso ao remédio a muitas famílias, que buscam com esses jardineiros a versão artesanal e gratuita do medicamento.
Já fazia algum tempo que João (nome fictício) planejava juntar algumas flores da erva para fabricar o óleo quando, há poucos meses, um amigo pediu sua ajuda. Sua mulher, com câncer, precisava do medicamento, mas não tinha possibilidades de importar. O jardineiro então colheu as flores, esperou secar e iniciou o preparo. “Todo mundo que planta para uso recreativo está tentando fabricar o remédio no Brasil. Acredito que em São Paulo tenha umas dez pessoas produzindo”, contou ele ao iG.
Questionado pela reportagem sobre quanto recebeu pelo medicamento, João se irritou. “Comece tirando a palavra ‘comércio’ do seu vocabulário. Ninguém vende nem compra nada. Nem eu, nem pacientes, nem outros jardineiros. É irmandade, cooperação, união e generosidade”, diz o rapaz. “Não conheço nenhum paciente que tenha comprado algo de algum jardineiro, só quem compra da Hempmeds.”
Sediada em San Diego, Estados Unidos, a Hempmeds é a maior produtora e exportadora de CBD do mundo. Além de uma série de requisitos exigidos pela lei brasileira para permitir a importação do produto – como receita médica e a comprovação da ineficácia de outras terapias -, custa caro importar.
O pagamento é feito por cartão internacional e o remédio enviado por avião. Para retirá-lo, é preciso ir até o aeroporto de Viracopos (Campinas/SP) ou pagar R$ 300 pelo Fedex, serviço de entrega internacional em domicílio. Por uma seringa de 10 ml, os pais de um paciente consultados pelo iG desembolsam R$ 1,5 mil. Portador de epilepsia grave, o garoto de 9 anos toma 100 gotas de 12 em 12 horas.
Para fabricar o óleo para a mulher do amigo, João utilizou uma planta e meia, equivalente a 30 gramas. Depois de seca, ele tritura a flor e a coloca em um saco de pano com gelo seco. O resultado é um pó verde claro que é depositado em uma vasilha. Esse material fica de molho em álcool de cereais por algum tempo. “Aí coa e ferve até evaporar todo o solvente. Rende apenas 10% em óleo.”
O jardineiro explica que ninguém no Brasil produz em grandes quantidades porque seria necessário muitas mudas de maconha. Ele acredita que apenas quando a planta e o remédio forem legalizados é que será possível produzir em grandes volumes, quando cooperativas e a iniciativa privada poderão investir e até lucrar com o CBD.
João agora quer fazer a tintura, versão mais diluída do remédio, que rende “bem mais”. Ele cita outras formas de remédio medicinal extraídos da maconha, como “suco, manteiga, variedade de doces”. “Mas o óleo é o tipo mais concentrado, bruto de canabidiol”, garante.
Embora esteja disposto a ajudar, o produtor prefere que as famílias plantem sua maconha e eles mesmos produzam o remédio. “É errado fornecer o óleo porque você dá o peixe sem ensinar a pescar. Da mesma forma que eu faço, as famílias poderiam fazer também. Eu só dou o óleo que faço porque não preciso e tem sempre alguém que precise”, diz ele. “Mas nunca vou ‘adotar’ uma criança porque os pais é que têm de se mexer.”
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Por IG