A Superioridade da Civilização Ocidental
Nunca é demais repetir: o atentado ao Charlie Hebdo é um crime hediondo que merece todo repúdio e veemente condenação. A revolta e indignação legítimas criam, porém, um clima pouco propício à reflexão crítica, impondo um raciocínio falacioso que identifica a crítica à utilização política da tragédia com a leniência com os criminosos. Não há contradição entre a condenação do atentado e a crítica ao discurso hegemônico, que se arvora defender a tolerância e a liberdade de expressão, mas é marcado pela parcialidade e intolerância.
É flagrante como a defesa da liberdade de expressão (e manifestação) privilegia um lado em detrimento do outro. A França promulgou uma lei que proíbe o uso do véu islâmico. Não vemos vozes se levantarem contra esse terrível ataque à liberdade de expressão e de violência simbólica. Vestir-se segundo os preceitos de sua fé é parte essencial da construção da identidade social do indivíduo. Imaginem a reação do mundo se a França proibisse o uso da indumentária típica dos judeus ortodoxos. Em 2014, a prefeitura de Paris proibiu uma manifestação pró-palestinos, mas não se condena esse desrespeito à liberdade de manifestação.
A presença de Netanyahu na manifestação contra o atentado ao Charlie Hebdo seria cômica, se não fosse trágica. Em 1987, o palestino Naji al-Ali , cujos cartuns enalteciam a luta de seu povo, foi assassinado, em Londres, por um criminoso que confessou servir ao Mossad, serviço secreto de Israel. Não houve uma comoção semelhante, nem canetas empunhadas contra armas assassinas.
Embora publicasse charges ofensivas às religiões católica e judaica, o Charles Hebdo ficou marcado por charges ofensivas à religião islâmica, representando jocosamente o Profeta Maomé. O direito de publicar essas charges é hoje defendido como parte do direito à liberdade de expressão. Ocorre que tal direito não é absoluto, como sugerido. Quando publicou uma charge racista, o jornal foi processado e condenado. Não é um retrocesso, mas o amadurecimento da sociedade, que reconhece que o respeito à pluralidade de identidades culturais está acima do direito do indivíduo de falar o que quiser, muitas vezes pregando o ódio e o preconceito.
Há temas interditados ao humor na sociedade ocidental. E esse Index inclui a escravidão africana e o holocausto dos judeus. Quando Lars von Trier fez uma piada, elogiando Hitler, foi banido do Festival de Cannes. E a mídia não saiu em defesa do cineasta, invocando o direito à liberdade de expressão.
A tolerância é o respeito ao outro e à diferença. Na fraseologia cristã: “Não faça ao outro o que não quer que façam a você”. Na religião islâmica, não são admitidas representações gráficas de Maomé, e representações jocosas do Profeta têm a mesma conotação entre os mulçumanos que charges racistas têm entre os ocidentais. Se um jornal mulçumano publicasse charges ofensivas ao holocausto, com a conivência do seu governo, com base no direito à liberdade de expressão, a revolta no Ocidente seria enorme, quiçá com atentados ao jornal.
Cercear, no ocidente, charges ofensivas à religião islâmica, como ocorre com as racistas, não seria uma violação da liberdade de expressão, mas o exercício da tolerância e do respeito ao outro e à diferença.
Seria uma questão para o debate entre direitos individuais e o respeito à diversidade cultural. Porém, a atrocidade cometida contra o Charlie Hebdo reduziu drasticamente o espaço da reflexão, criando um terreno fértil ao discurso sectário da superioridade da civilização ocidental, “a única em que predominam a tolerância e as liberdades individuais”, em oposição às outras sociedades, particularmente a muçulmana, que “é atrasada, intolerante e autoritária”.
Tal discurso de superioridade, aliás, tem dado o tom da relação do mundo ocidental com o resto do planeta, legitimando o extermínio de centenas de povos, como os povos indígenas brasileiros, porque não “não tinham lei, nem rei, nem fé”. E infelizmente continuará servindo de apoio para novas intervenções e bombardeios em países árabes e o ininterrupto genocídio do povo palestino.
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Por Dante Lucchesi
Sociolinguista e Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)